Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Depois de um dia mau pode haver um céu estrelado. O meu reino.


17
Out08

carta ao meu pai

por Princesa das estrelas
Estes Têm sido dias tristes. Fecho os olhos a rever a última semana e invade-me uma sensação de incredulidade. Como é possível? Ainda há duas semanas conversava com contigo enquanto te massajava as costas e hoje estás lá longe, fechado num caixão, a muitos palmos de profundidade. Fecho os olhos e revejo: a minha mãe a ligar-me a dizer que estavas pior; eu a ir trabalhar normalmente, não querendo acreditar que ias morrer mas, no fundo, a temer isso mesmo; um novo telefonema a dizerem-me para me ir despedir de ti; eu lá, naquela sala sozinha contigo, que dormias tranquilo, e a olhar para aquele monitor (imagem que nunca me irá sair da cabeça) e a ver a pulsação cada vez mais baixa (60, 58, 50, 48) e a tensão lá tão em baixo apesar de toda a medicação que estavas a tomar. E aí percebi que me ias morrer, pai. Morrer à séria, de verdade, que me ias deixar. E pedi-te, para que o sofrimento do mano fosse menor, que morresses comigo. Mas tu não quiseste. Tinha sido ele a tomar conta de ti, era com ele que partirias... e fecho os olhos e vejo-me, mecanicamente, mesmo antes do monitor morrer contigo, a ir a casa com a mãe buscar-te uma roupa. Uma roupa bonita porque o mano não iria suportar a dor de ter de te embrulhar num lençol como se faz com os outros mortos nos hospitais. E sinto-me esquisita, e senti-me na altura, com isto de te ir buscar a roupa sem que tivesses morrido. Senti-me mal e senti-me má... e fecho os olhos e oiço o telemóvel e era o mano e eu olhei para a mãe a adivinhar o que lá vinha. E fomos a correr para junto de ti. A roupa muito bem escolhida, tudo a condizer. Tive tempo até de te engraxar os sapatos, que tu detestavas sapatos mal engraxados. E escolhi com cuidado o fato e o lenço, a camisa, as meias... tudo a condizer e tudo para que não tivesses frio lá nesse sítio para onde foste. E fecho os olhos e vejo-me na clínica, saco da roupa debaixo do braço, a mãe a dizer que não mais te conseguiria ver porque queria guardar de ti a imagem de vida. E eu ali, saco debaixo do braço e o mano à minha frente com a dura tarefa de ter de te vestir. E o que faço? Chego-me à frente, olho-o nos olhos e digo-lhe que vamos fazer juntos a última coisa que podíamos fazer por ti. E fecho os olhos e vejo-me a apertar-te os botões da camisa branca, a compôr o lenço no pescoço para que não se notasse o penso que tinhas debaixo, a calçar-te as meias e os sapatos. Eu e o mano, num ritual silencioso. E tu estavas tão quentinho pai, Não fosse o peso excessivo do teu corpo sem vida e eu acreditaria que continuavas a dormir. Mas o monitor estava morto e tu com ele. E fecho os olhos e vejo-me na terra, um frio de cortar os ossos e nós sozinhos naquela sala, tu no meio caixão aberto. E as pessoas foram chegando e com elas a certeza que tu não ias voltar comigo. Que ias ficar ali para sempre na tua terra. E demorei-me ali, a olhar-te, com a minha mão na tua, a despedir-me da tua presença física. Não de ti, que sei que nunca morrerás dentro de mim, mas do teu corpo. E volto a fechar os olhos e vejo a mãe, quase adormecida, vejo a avó, vejo as tuas irmãs e todo aquele coro trágico do qual fugi mal consegui. Eu entendo-os mas não consigo ter forças para consolar os outros. A tua perda doi-me tanto que não quero ouvir gritos nem lamentos. E fecho os olhos e vejo-me a correr para fora do cemitério para não ouvir o som da terra sobre ti.
E agora, pai, o que faço?

Autoria e outros dados (tags, etc)


9 comentários

Sem imagem de perfil

De Prezado a 26.10.2008 às 22:59

Não li o post. imagino só o que ele diz, porque há um ano devo ter sentido algo parecido. não consegui torturar-me a ler algo tão familiar. Mas também não consigo ir sem dizer nada.

Continua a escrever.

Força.

Comentar post



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

  Pesquisar no Blog



Calendário

Outubro 2008

D S T Q Q S S
1234
567891011
12131415161718
19202122232425
262728293031

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2008
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2007
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2006
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2005
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D