por Princesa das estrelas
Estes Têm sido dias tristes. Fecho os olhos a rever a última semana e invade-me uma sensação de incredulidade. Como é possível? Ainda há duas semanas conversava com contigo enquanto te massajava as costas e hoje estás lá longe, fechado num caixão, a muitos palmos de profundidade. Fecho os olhos e revejo: a minha mãe a ligar-me a dizer que estavas pior; eu a ir trabalhar normalmente, não querendo acreditar que ias morrer mas, no fundo, a temer isso mesmo; um novo telefonema a dizerem-me para me ir despedir de ti; eu lá, naquela sala sozinha contigo, que dormias tranquilo, e a olhar para aquele monitor (imagem que nunca me irá sair da cabeça) e a ver a pulsação cada vez mais baixa (60, 58, 50, 48) e a tensão lá tão em baixo apesar de toda a medicação que estavas a tomar. E aí percebi que me ias morrer, pai. Morrer à séria, de verdade, que me ias deixar. E pedi-te, para que o sofrimento do mano fosse menor, que morresses comigo. Mas tu não quiseste. Tinha sido ele a tomar conta de ti, era com ele que partirias... e fecho os olhos e vejo-me, mecanicamente, mesmo antes do monitor morrer contigo, a ir a casa com a mãe buscar-te uma roupa. Uma roupa bonita porque o mano não iria suportar a dor de ter de te embrulhar num lençol como se faz com os outros mortos nos hospitais. E sinto-me esquisita, e senti-me na altura, com isto de te ir buscar a roupa sem que tivesses morrido. Senti-me mal e senti-me má... e fecho os olhos e oiço o telemóvel e era o mano e eu olhei para a mãe a adivinhar o que lá vinha. E fomos a correr para junto de ti. A roupa muito bem escolhida, tudo a condizer. Tive tempo até de te engraxar os sapatos, que tu detestavas sapatos mal engraxados. E escolhi com cuidado o fato e o lenço, a camisa, as meias... tudo a condizer e tudo para que não tivesses frio lá nesse sítio para onde foste. E fecho os olhos e vejo-me na clínica, saco da roupa debaixo do braço, a mãe a dizer que não mais te conseguiria ver porque queria guardar de ti a imagem de vida. E eu ali, saco debaixo do braço e o mano à minha frente com a dura tarefa de ter de te vestir. E o que faço? Chego-me à frente, olho-o nos olhos e digo-lhe que vamos fazer juntos a última coisa que podíamos fazer por ti. E fecho os olhos e vejo-me a apertar-te os botões da camisa branca, a compôr o lenço no pescoço para que não se notasse o penso que tinhas debaixo, a calçar-te as meias e os sapatos. Eu e o mano, num ritual silencioso. E tu estavas tão quentinho pai, Não fosse o peso excessivo do teu corpo sem vida e eu acreditaria que continuavas a dormir. Mas o monitor estava morto e tu com ele. E fecho os olhos e vejo-me na terra, um frio de cortar os ossos e nós sozinhos naquela sala, tu no meio caixão aberto. E as pessoas foram chegando e com elas a certeza que tu não ias voltar comigo. Que ias ficar ali para sempre na tua terra. E demorei-me ali, a olhar-te, com a minha mão na tua, a despedir-me da tua presença física. Não de ti, que sei que nunca morrerás dentro de mim, mas do teu corpo. E volto a fechar os olhos e vejo a mãe, quase adormecida, vejo a avó, vejo as tuas irmãs e todo aquele coro trágico do qual fugi mal consegui. Eu entendo-os mas não consigo ter forças para consolar os outros. A tua perda doi-me tanto que não quero ouvir gritos nem lamentos. E fecho os olhos e vejo-me a correr para fora do cemitério para não ouvir o som da terra sobre ti.
E agora, pai, o que faço?
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