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Depois de um dia mau pode haver um céu estrelado. O meu reino.


18
Nov13

A puta da consciência e da culpa

por Princesa das estrelas
Foi em 2008. O meu pai estava a morrer, lentamente a escapar-se e a sofrer. Todos os dias um pouco mais. A minha mãe não se cansava de lutar por todos nós e de tentar procurar soluções crente que as coisas correriam pelo melhor, como parecia acontecer comigo. Estávamos com uma viagem a Madrid marcada para consultar um médico que prometia a cura do meu pai.
Foi por esses dias que soube que estava grávida. Grávida? Mas se eu estava a tomar a pílula... mas se eu era doente oncológica e tinha ainda o corpo minado de tóxicos da quimio e da rádio... como era possível que estivesse grávida? Soube pouco depois que sendo eu uma pessoa sem estômago poderia
não fazer correctamente a absorção da pílula. Soube-o da pior forma possível.
Hoje, quase seis anos depois, tenho momentos de grande arrependimento. Mas na altura tomei a decisão que poderia tomar com a informação de que dispunha: o risco de voltar a ficar doente era grande sem uma gravidez, grávida então subia exponencialmente; já para não falar dos possíveis efeitos no bebé de tantos ciclos de quimioterapia e radioterapia. Eu estava em frangalhos a lutar há um ano contra a doença do meu pai, a fazer das tripas coração para que ele pudesse recuperar ou, pelo menos, ter um final de vida digno... fiquei devastada, morta por dentro. Eu que queria tanto ter outro filho tinha diante de mim uma das decisões mais difíceis da minha vida. Ali estava diante de mim a razão pela qual eu tinha sido uma acérrima defensora da despenalização da IVG.
Na minha cabeça, naquele momento, não havia outra decisão a tomar.
Seguiram-se dias horríveis: três dias obrigatórios de reflexão; o olhar crítico das funcionárias da maternidade (as mesmas que na gravidez da Alice me trataram tão bem), o ter de levar uma vida como se nada se passasse comigo durante esses dias, o fim-de-semana em Vila Viçosa (ainda hoje não gosto de olhar para essas fotografias), a viagem a Madrid com  o meu pai, eu a conduzir para lá e para cá... o tempo parecia passar em câmara lenta, a agonia não parava de crescer... e a cada dia que passava as minhas dúvidas aumentavam: será que estava a tomar a decisão certa? e se nada me acontecesse? e se eu nunca mais conseguisse engravidar?
Na altura tomei a minha decisão depois de muita ponderação. Mas com muita dor, e muitas dúvidas. E obriguei a auxiliar de acção médica a exigir que no processo constasse "razões médicas" na minha decisão. Por nada, a não ser porque era a verdade. Eu tinha lutado e discutido muito para que aquela decisão fosse livre. Mas, no meu caso, estava a morrer por dentro por ter de a tomar.
Já passaram muitos anos, quase seis, eu voltei a engravidar, tenho a bebé mais fofa do mundo, tenho uma família que amo e que me adora. E, às vezes penso, poderíamos ser 5 e não 4.
Mas rapidamente afasto estes pensamentos. Eu fiz o que deveria ter feito. Vivo com a minha decisão, mas sei que tomei a decisão que deveria.
Por isso fico doente e irada quando vejo as fundamentalistas do pró-vida à porta da Clinica dos Arcos a rotular de assassinas as mulheres que ali se deslocam. Fico tão fora de mim que me apetece bater-lhes, muito. Com força. Com toda a força necessária para que percebam que às vezes é a única solução que nos resta. Que às vezes, perante uma grande dúvida e incerteza, a mãe não tem condições físicas e psicológicas para levar uma gravidez para a frente; que ninguém sofre mais do que nós, que enquanto mães que amam os seus filhos, que anseiam pelo nascimento de mais uma criança, nos vemos forçadas a tomar a mais dura das decisões.
Hoje senti necessidade de contar esta parte mais triste da minha história, para que todas as que se sentem obrigadas a tomar uma decisão como aquela que eu tomei percebam que as coisas acabam por passar; a vida continua o seu caminho, nós deixamos de nos sentir secas e vazias, voltamos a amar, voltamos a deixar que nos toquem, voltamos a querer ser mães, voltamos a ter um bebé nos nossos braços.

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